VIH - A DESMISTIFICAÇÃO DO ESTIGMA

Numa contenda procura-se sempre encontrar um culpado. Numa sociedade, arruinada pela competitividade selvagem, a inferiorização do outro é sempre uma constante. Fazemo-lo das formas mais insidiosas que passam despercebidas aos olhos dos comuns mortais. Fazemo-la na "educação" distorcida com que socializamos as nossas crianças. Frases como: "vês meu filho, há tanta criança pobrezinha que não tem o que tu tens" inculcam na alma, em formação, que há vários patamares de pessoas e que umas são privilegiadas e outras não. E que devemos lutar por alcançar outro patamar e nunca descer daquele que já se tem. Aprende-se a estratificar não só o status e o poder como as próprias emoções.
Em sociedades em que os sentimentos de afectividade se relegam para um compartimento distante doenças conotadas como malditas são uma espécie de vício que alimenta mentes enquistadas num mundo que lhe tirou os sonhos e lhe deu em troca ilusões frustrantes.
E assim se fez longe o que era perto. E assim se criaram guetos de pessoas infelizes, mais infelizes ainda quando os estigmas se somam numa só pessoa. A solidão torna-se agora mais densa porque é mais do que se estar sozinho. É não querer expor as feridas para não admitir que elas existem. É não querer aparecer diminuído aos olhos dos outros. É não querer sofrer em cima do sofrimento.
É isso que a sociedade tem feito aos portadores do VIH. Uma sociedade que se acha acima dos seus males porque está tão doente que não percebe que o mal está em si própria.Um pouco como aqueles pais que tiveram um filho anão e esconderam todos os espelhos para que o filho não se desse conta que era diferente. E assim o filho foi para a escola e um dia juntou-se a um grupo de colegas que foi vaiar um anão que por lá passou. Então os colegas olham para ele e disseram: mas aquele homem é igual a ti!
Um pouco assim vai acontecendo com os estigmas. Estigmatizamos a nossa imagem por a julgarmos diferente de nós. Hoje sabe-se, com números correctos do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge que, no período 1983-2009, o maior número de casos de SIDA se verificou entre os heterossexuais que não pertencem aos conotados grupos de risco mas que representam, actualmente, 36,5% dos infectados.
Todos nós podemos ser infectados. Porém, será que vamos continuar a não querer ver? Será que vamos continuar a apostar na estigmatização dos portadores do VIH?Será que vamos continuar a morrer quando devíamos começar a nascer para um mundo novo mais compatível com os grandes avanços da ciência e da humanidade?
Lídia Soares

EM CONTRA-MÃO

Chamava-se Jorge mas podia ser outro nome qualquer. Nasceu esquerdina mas logo lhe batiam para ele não ser. Usava a mão direita mas era com a esquerda que queria escrever. As frases falhavam, falhavam as ideias, mas tanta a porrada que destro se tornou apesar de não ser.
Queria ser pintor tanta era a arte que de si brotava. Mas logo lhe disseram que tal não prestava. Seria doutor, teria que ser um grande senhor. Mas Jorge não gostava. Mas acabou por ser. E logo casava apesar de não querer. Amar ele amava aquela doutora com quem foi viver. Mas a natureza em si reclamava. É que Jorge gostava de homens iguais com quem partilhava pecados mortais. Porque não podia "ser e não ser" o Jorge sufocava mas teve que esquecer. Porque ele amava a ternura das mulheres e a sua ventura mas tal não chegava. E o Jorge gritava mas teve que esconder. Porque ninguém o amava no "ser e não ser" e ele procurava mas não encontrava. E num dia macabro outra verdade lhe foi confrontada. Dum desses "pecados", em noite calada, surgiu a doença do VIH. E todos ocultaram, e ele se fechou nesta dor imensa de ter que esconder.
No trabalho disseram: ele é um maricas não pode exercer. Não queremos, na imagem da nossa empresa, um gajo que é gaja! E o Jorge assustado lá foi disfarçado para não se abater. Olhava uma amiga a quem confiava e de quem gostava por ela o saber igual ao que estava sem se esconder. A ela dizia, não mais suportar esta crua agonia de estar e não estar.
E então escrevia, e então pintava e então criava como ninguém fazia. Talvez pondo fora, com a alma vazia do que o angustiava, pudesse ver o dia. Mas o Jorge não podia ser o que não era. Escrever destramente, ser fiel à Margarida com o corpo dolente e o VIH a reclamar-lhe a vida. Não queria ser doutor, não queria ser senhor, queria apenas viver. Viver como era, inteiro demais na estrada severa pejada de chacais. E porque a sua vida era em contra-mão não teve guarida. Ninguém mudou o transito desta expiação. E o Jorge um dia disse não à vida e assim se libertou desta capa dorida.
E pôde seguir inteiro e esquerdina, um gay assumido, um pintor colorido e um grande senhor. Todos o choraram por aquilo que não era mas aliviados por a sua morte tapar os estigmas que todos esconderam. Só eu chorei de dor por aquilo que ele era. Um homem imenso, maior que o mundo que não o entendera.
P.S. Este texto dedico ao meu Amigo Jorge P. que se suicidou há alguns anos.
Lídia Soares

DESAMOR

Faltavam escassos dias para o fim de Ano. Catorze, dezasseis anos atrás? Não sei bem. Sei que chovia e fazia frio. E que àquele centro de apoio dos sem-abrigo se multiplicavam os pedidos de ajuda.
Frequentemente era a polícia que os trazia caídos em estradas por onde ninguém passava. Porque os que passavam não os viam ou tinham medo de se aproximar. O receio de ser assaltado impunha-se a uma generosidade eventual mesmo em dias de festa e de maiores generosidades.
Foi assim que trouxeram a Ana, faltava poucos dias para o Ano terminar. Fui avisada pela minha amiga P., que é freira, para não me aproximar demasiado pois o cheiro, que já é insuportável nos sem-abrigo, nela parecia ter-se multiplicado. Era sempre a parte mais difícil da minha solidariedade. Lidar com cheiros que pareciam perseguir-nos mesmo quando não estavam.
Pouco depois de a acomodar na sala de triagem, P. chega junto de mim e avisa:
- temos que a levar para o hospital. Ela deve ter dentro de si um feto morto e não se sabe desde há quantos dias. Procurámos identificação nos bolsos do casaco, mas nada. Na mala tinha uma factura com um nome e um apelido. Talvez por aí....
Éramos só as duas, a P. e eu que estávamos de piquete. Era sempre mais difícil encontrar quem se dispusesse a abdicar da passagem de Ano. Só mesmo quem como eu não gosta dessa Festa ou como a P: que se tinha entregado a Deus e aos outros. Ana quase não se dá conta do que lhe estava a acontecer. Mas aperta a minha mão e a de P. com a força que lhe resta. E olha-nos nos olhos com um olhar que nunca esqueci.
A ambulância leva-a e P. não desiste de procurar. Liga para a polícia, pede informações. Deve haver alguém. P. acha que tem que haver alguém até porque, segundo ela, havia naquela rapariga e do pouco que lhe restava, indícios dum passado em que estaria longe de ser mendiga. Efectivamente ela tinha um feto morto dentro dela. E morreu sozinha num Hospital de Lisboa na noite da passagem de Ano. Nós estávamos acordadas a P. e eu e lembro-me de ter ouvido o barulho dos foguetes e do bater de tampas pelas ruas. Nós não abrimos as janelas. Ficámos ali. Então a P. disse-me que sempre tinha encontrado a família da Ana e que já lhe tinha comunicado o seu falecimento. E ficámos caladas até que adormecemos e o dia raiou.
Por volta do meio dia fomos surpreendidas pela chegada dum Mercedes, provavelmente topo de gama, que era conduzido por um motorista e trazia uma enorme coroa de flores. P., que costumava ser mais macia que eu nestas circunstâncias, olha o motorista com dureza e disse-lhe que levasse as flores de volta. Que Ana não precisava delas. Que o que ela precisou foi do amor que não estava ali.
Não sei quem era Ana nem sei a sua história. Mas com ela aprendi duma forma absoluta o significado da palavra solidão. Uma solidão que rói as entranhas a muita gente e que se agudiza nestes dias de festas e de família. Uma solidão que ninguém deve sentir em circunstância alguma. Sejam quais forem os erros que tenha cometido. Sejam quais forem as opções de vida que tenha feito.
Lídia Soares

ESTIGMA SOCIAL

O termo “estigma” já era usado na Grécia Antiga para designar sinais corporais que desqualificavam o cidadão marcado com tal sinal. Na Grécia antiga, escravos, criminosos e traidores traziam marcas nos corpos como forma de serem discriminados em locais públicos.

Para os primeiros cristãos, a palavra estigma representava distúrbios físicos ou sinais metafóricos de graças divinas. Nos dias atuais o estigma surge para categorizar as pessoas segundo normas dentro de conceitos de normalidades e aceitação padrão.

O estigma social também surge nas relações de afirmação de identidade e nível social entre os indivíduos de uma sociedade. Na formação de identidade que uma pessoa expressa, inicia de maneira virtual, quando não conhecemos a pessoa e a identificamo-na como esperamos e, depois se completa de forma real, quando conhecemos os atributos que a pessoa possui.

Uma pessoa formada na faculdade e bem empregada possui um estigma social positivo, porém se a mesma estiver mal empregada expressará um estigma negativo. O estigma social resulta da relação de atributos e identidades que uma pessoa possui e os estereótipos sociais cobrados e interpretados no meio em que ela vive.

O estigma social possui três níveis distintos: deformidades corporais; fraqueza de caráter; e abominações de atos. Em muitas situações , os estigmatizados não seriam considerados humanos ou incluídos em sociedade.

GISBERTA - O ROSTO DA NOSSA INDIGNAÇÃO


É um dever cívico recordar Gisberta como símbolo da exclusão e da ausência de humanidade. Como símbolo de uma sociedade cruel e indiferente, que trata os deprimidos como se não fossem gente.
O caso Gisberta consubstancia todas as vertentes da miséria humana. Era um sem abrigo sem eira nem beira. Era um prostituto de rua dos mais prostitutos e dos mais aviltados. Era imigrante brasileiro num país que não soube integrá-lo. Era transsexual numa sociedade que ainda discrimina. Era pobre entre os mais pobres sem afectos.
Um grupo de crianças, entregues a uma instituição maltratavam Gisberta. Batiam-lhe, insultavam-no, porque elas crianças, também sem raízes, viam em Gisberta o que não queriam ser. E batiam, batiam e Gisberta implorava e foi atirado vivo(a) para um poço onde agonizou três dias antes de morrer numa ruela da cidade do Porto.
Porque Gisberta não era ninguém, não era nada, neste mundo injusto que teima em a esquecer.
Símbolo dos pobres e dos maltratados, nós não deixaremos Gisberta morrer.
Olhem para Gisberta, lembrem-se de nós, que aqui estamos para a fazer viver.
Porque não seremos gentes enquanto a deixarmos morrer.

Lídia Soares

HOMOSSEXUALIDADE NO FEMININO


Este texto é dedicado a uma Mulher rica de sensibilidade e de que me orgulho chamar Amiga.



Não, não me enganei sobre ti. Era impossível não sentir o apelo das tuas palavras, um desfiar de mágoas e de vidas, de dignidade e de amor. De muito amor por sinal.
Amor pela mulher que amas e amaste, pelo filho que crias como teu. Amor pela vida que te pode dar tanto, algures no interior do País onde as tardes são tranquilas e as noites calmas.
É verdade, Amiga, que vens de longe onde havia noites que não terminavam e onde o perigo e o medo te deixaram sem voz.
Já foi há muito tempo, Amiga, mas ainda sentes os braços da tua mãe que te acarinharam e te protegeram. Uma mãe que defendeu com o seu corpo a tua integridade quando em terras de África os soldados invadiram a vossa casa. Uma mãe que te ama tanto que daria a vida por ti mas que não é capaz de entender a tua homossexualidade.
Tu sentes a falta dos seus braços e da sua compreensão agora que são para ti claras as opções que tomaste. Certamente que no seu canto, longe, ela chora e pensa em ti mas não é capaz de dar o passo.
As regras dos homens cobrem a espontaneidade dos sentimentos e o orgulho que continuamos a ter naqueles que amamos.
Amiga, não desistas. A tua mãe está e estará sempre contigo, tão perto como quando passava a mão na tua cabeça.
São os preconceitos, Amiga, tão mortíferos como a arma mais mortífera, que roubam tempo à vida e oportunidades sem retorno.
São as sociedades que precisam discriminar, para obter diferenças, para desvalorizar, para retirar dignidade a cada condição. Há poderes que se edificam pela dor alheia. Não devia ser mas é. A igualdade de oportunidades continua a ser um mito.
Porém não nos resignemos. Neste espaço hão-de nascer e solidificar-se muitas solidariedades. E seremos mais fortes para dizer a muitas mães que, como a tua, ainda não foram capazes de romper com o silêncio culpado.
Um dia o sol há-de nascer e há-de ser para todos os que procuram a sua luz. Sorri e não tenhas medo de seguir o teu coração e ires em frente.
Nem todos na vida são autênticos nos sentimentos que exibem, mas tu és. Por isso estás entre os melhores. Algum dia as sociedades irão entender isso.
Lídia Soares