DESAMOR

Faltavam escassos dias para o fim de Ano. Catorze, dezasseis anos atrás? Não sei bem. Sei que chovia e fazia frio. E que àquele centro de apoio dos sem-abrigo se multiplicavam os pedidos de ajuda.
Frequentemente era a polícia que os trazia caídos em estradas por onde ninguém passava. Porque os que passavam não os viam ou tinham medo de se aproximar. O receio de ser assaltado impunha-se a uma generosidade eventual mesmo em dias de festa e de maiores generosidades.
Foi assim que trouxeram a Ana, faltava poucos dias para o Ano terminar. Fui avisada pela minha amiga P., que é freira, para não me aproximar demasiado pois o cheiro, que já é insuportável nos sem-abrigo, nela parecia ter-se multiplicado. Era sempre a parte mais difícil da minha solidariedade. Lidar com cheiros que pareciam perseguir-nos mesmo quando não estavam.
Pouco depois de a acomodar na sala de triagem, P. chega junto de mim e avisa:
- temos que a levar para o hospital. Ela deve ter dentro de si um feto morto e não se sabe desde há quantos dias. Procurámos identificação nos bolsos do casaco, mas nada. Na mala tinha uma factura com um nome e um apelido. Talvez por aí....
Éramos só as duas, a P. e eu que estávamos de piquete. Era sempre mais difícil encontrar quem se dispusesse a abdicar da passagem de Ano. Só mesmo quem como eu não gosta dessa Festa ou como a P: que se tinha entregado a Deus e aos outros. Ana quase não se dá conta do que lhe estava a acontecer. Mas aperta a minha mão e a de P. com a força que lhe resta. E olha-nos nos olhos com um olhar que nunca esqueci.
A ambulância leva-a e P. não desiste de procurar. Liga para a polícia, pede informações. Deve haver alguém. P. acha que tem que haver alguém até porque, segundo ela, havia naquela rapariga e do pouco que lhe restava, indícios dum passado em que estaria longe de ser mendiga. Efectivamente ela tinha um feto morto dentro dela. E morreu sozinha num Hospital de Lisboa na noite da passagem de Ano. Nós estávamos acordadas a P. e eu e lembro-me de ter ouvido o barulho dos foguetes e do bater de tampas pelas ruas. Nós não abrimos as janelas. Ficámos ali. Então a P. disse-me que sempre tinha encontrado a família da Ana e que já lhe tinha comunicado o seu falecimento. E ficámos caladas até que adormecemos e o dia raiou.
Por volta do meio dia fomos surpreendidas pela chegada dum Mercedes, provavelmente topo de gama, que era conduzido por um motorista e trazia uma enorme coroa de flores. P., que costumava ser mais macia que eu nestas circunstâncias, olha o motorista com dureza e disse-lhe que levasse as flores de volta. Que Ana não precisava delas. Que o que ela precisou foi do amor que não estava ali.
Não sei quem era Ana nem sei a sua história. Mas com ela aprendi duma forma absoluta o significado da palavra solidão. Uma solidão que rói as entranhas a muita gente e que se agudiza nestes dias de festas e de família. Uma solidão que ninguém deve sentir em circunstância alguma. Sejam quais forem os erros que tenha cometido. Sejam quais forem as opções de vida que tenha feito.
Lídia Soares

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