EM CONTRA-MÃO

Chamava-se Jorge mas podia ser outro nome qualquer. Nasceu esquerdina mas logo lhe batiam para ele não ser. Usava a mão direita mas era com a esquerda que queria escrever. As frases falhavam, falhavam as ideias, mas tanta a porrada que destro se tornou apesar de não ser.
Queria ser pintor tanta era a arte que de si brotava. Mas logo lhe disseram que tal não prestava. Seria doutor, teria que ser um grande senhor. Mas Jorge não gostava. Mas acabou por ser. E logo casava apesar de não querer. Amar ele amava aquela doutora com quem foi viver. Mas a natureza em si reclamava. É que Jorge gostava de homens iguais com quem partilhava pecados mortais. Porque não podia "ser e não ser" o Jorge sufocava mas teve que esquecer. Porque ele amava a ternura das mulheres e a sua ventura mas tal não chegava. E o Jorge gritava mas teve que esconder. Porque ninguém o amava no "ser e não ser" e ele procurava mas não encontrava. E num dia macabro outra verdade lhe foi confrontada. Dum desses "pecados", em noite calada, surgiu a doença do VIH. E todos ocultaram, e ele se fechou nesta dor imensa de ter que esconder.
No trabalho disseram: ele é um maricas não pode exercer. Não queremos, na imagem da nossa empresa, um gajo que é gaja! E o Jorge assustado lá foi disfarçado para não se abater. Olhava uma amiga a quem confiava e de quem gostava por ela o saber igual ao que estava sem se esconder. A ela dizia, não mais suportar esta crua agonia de estar e não estar.
E então escrevia, e então pintava e então criava como ninguém fazia. Talvez pondo fora, com a alma vazia do que o angustiava, pudesse ver o dia. Mas o Jorge não podia ser o que não era. Escrever destramente, ser fiel à Margarida com o corpo dolente e o VIH a reclamar-lhe a vida. Não queria ser doutor, não queria ser senhor, queria apenas viver. Viver como era, inteiro demais na estrada severa pejada de chacais. E porque a sua vida era em contra-mão não teve guarida. Ninguém mudou o transito desta expiação. E o Jorge um dia disse não à vida e assim se libertou desta capa dorida.
E pôde seguir inteiro e esquerdina, um gay assumido, um pintor colorido e um grande senhor. Todos o choraram por aquilo que não era mas aliviados por a sua morte tapar os estigmas que todos esconderam. Só eu chorei de dor por aquilo que ele era. Um homem imenso, maior que o mundo que não o entendera.
P.S. Este texto dedico ao meu Amigo Jorge P. que se suicidou há alguns anos.
Lídia Soares

4 comentários:

  1. Arrepiei-me, principalmente porque também eu andei nessa luta interior do "ser e não ser", não sou esquerdina, não tenho alma de pintora mas sou mulher que ama mulheres mas foi educada para amar homens. Felizmente acordei e revoltei-me contra a educação que me foi imposta antes de chegar ao ponto que o Jorge chegou, muitas vezes o pensei mas nunca tive coragem de o fazer e hoje pensando friamente no assunto chego à conclusão de que apenas o amor imenso que tenho pelo meu filho me impediu de faze-lo pois se eu terminasse com a minha agonia iria permitir que ele tivesse a mesma educação que eu tive e isso era cruel de mais para eu aceitar.

    Hoje felizmente estou no caminho da minha felicidade e a lutar por voltar a ter o meu tesouro comigo, por ele faço tudo, até ser eu mesma.

    Beijos grandes amiga

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  2. Cara amiga Miss Rabbit
    Excelente o seu comentário e toda a coragem de vida que teve para ser aquilo que em essência na realidade é.
    A nossa sociedade é uma sociedade castradora que prefere as máscaras à realidade. Queremos uma sociedade que seja tolerante e que aceite com naturalidade as diferenças vendo nelas igualdade.
    A força daqueles que resistem ao estigma e discriminação de uma sociedade podre, são os pilares da construção de um novo estado de coisas onde a mudança levará às igualdades em direitos e deveres para todos os seres viventes.
    Eu e o projecto "O chão e a vida" lutamos por isso.
    Um abraço de um ser humano que tal como você e em campos diferentes, sabe como é difícil a luta para sermos aceites como somos.
    Raul Almeida

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  3. Obrigada pelas palavras Raul, apenas uma me "arranha os ouvidos" que é a palavra TOLERÂNCIA. A sociedade não tem que ser tolerante para com as "minorias" tem que as aceitar como parte integrante, tolerância vem de tolerar e eu não pretendo ser tolerada e sim aceite como um todo. Não deixo que olhem para mim e vejam apenas a minha forma de amar pois ela é uma das inúmeras características que me formam como pessoa. Assim como qualquer outra "minoria" social se baseia apenas numa característica de um conjunto de indivíduos e se analisarmos profundamente chegamos à conclusão de que todas as pessoas pertencem a uma minoria social em determinado aspecto, então porquê aceitar umas e tolerar outras?

    Entendo o sentido por si dado à palavra e tenho a certeza que não foi o por mim descrito a cima mas para mudar o mundo temos que começar por algum lado, então comecemos por nós.

    Grande abraço e agradeço em meu nome e em nome de todas as pessoas por algum motivo discriminadas o vosso projecto e a vossa luta que acaba por ser a NOSSA luta.

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  4. Miss Rabbit
    Não tem que haver lutas interiores para aqueles que Amam. A afectividade é sempre o bem mais precioso de um ser humano e a sua fonte de realização plena. A homoafectividade é tão bela e tão intensa quanto a hetero. Ninguém, mesmo ninguém, tem o direito de estabelecer escalões de preferência e, muito menos, condenações.
    As lutas que travas são lutas exteriores. Nunca as deverás passar para dentro de ti. Porque dentro de ti não há lutas. Há opções claras e transparentes.
    Só o que prejudica terceiros deverá ser condenado. Ora os afectos são sempre construção.
    Tal como a luta pelo teu filho. O filho que tu amas como qualquer mãe que ama. Há as que não amam e maltratam. Essas sim dignas de reparo. Não tu.
    O ser humano só atingirá um estádio superior de desenvolvimento quando parar de inferiorizar o outro sob os mais variados pretextos.
    É por isso que estamos aqui para que essa compreensão se cumpra e para que sejamos companhia.
    Para contribuir com as nossas palavras e a visibilidade que elas possam ter, para um Mundo melhor em que ninguém se discrimine.
    Quem discrimina diminui-se a si próprio. O alvo fica inteiro. E hão-de vir dias em que o respeito seja mais abrangente. Em que não seja necessário gritar. Porém enquanto houver um grito, enquanto te sentires sozinha, aperta a minha mão. Aperta a mão dos outros Amigos que aqui estão. Juntos faremos a diferença.
    Abraço

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